Ensaísta e crítico literário
Nasceu em Lourenço Marques, em 1930, e formou-se no Instituto Superior
Técnico, tendo encetado uma progressiva ligação a actividades culturais e
literárias.
Leccionou Literatura Portuguesa na Universidade de Maputo (Moçambique),
na Universidade de Estocolmo (Suécia) e na UNISA (África do Sul). Foi
Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres e docente do King´s
College.
Foi presidente da Comissão Nacional da UNESCO. Coordenou os três
primeiros volumes do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses.
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Primeiro Ministro
"Não há muitos dias, dirigi a V. Exa. uma carta que, como cidadão,
entendi dever enviar-lhe. Era uma carta séria
— e para ser levada a sério —, profundamente meditada e que visava dar a V. Exa. uma ideia do
sofrimento que grassa no nosso país, motivado por uma política financeira
fundamentalista e insensata, que tem promovido um sofrimento estéril e, portanto,
beirando o criminoso.
O problema, com este governo a que V. Exa. preside, é ser constituído
por políticos amadores e vastamente incultos: faltando-lhes cultura (histórica
e não só), tendem a não ter perspectivas e a não mergulhar nas experiências
milenares que a História regista para com ela aprendermos
O Sr. Ministro das Finanças, por exemplo, invoca, com ar professoral e
quase menosprezante, modelos “científicos” que, de “científico”, nada têm. Um
dos ingredientes fundamentais do universo científico é o princípio da
verificabilidade: quando uma hipótese de trabalho não é verificada pelos
arreliadores factos, deve ser abandonada, procurando-se outra melhor. É aquilo
a que Popper chama a “falsificação” da hipótese que já não serve, para maior proveito
da que vem a seguir...
O Sr. Ministro das Finanças tem visto todas as suas hipóteses — que, aliás se resumem a uma: cortar nos
rendimentos dos pobres e da classe dita média — desbaratadas pelos resultados
da aplicação delas. Mas, essas hipóteses, a que chama “modelos”, persiste em
aplicá-las em doses reforçadas. Fazendo este curioso raciocínio: aquilo que é
calamitoso, em doses modestas, é virtuoso, em doses reforçadas. A ciência, é
claro, tem horror a estes comportamentos.
A economia já é uma ciência relativa (“comportamental”, lembra, e muito
bem, o sensato e competente Dr. Bagão Félix), mas, nas mãos dogmáticas do Sr.
Ministro das Finanças, ela não passa de um dogma religioso, com pés de barro e
consequências sinistras.
Falei nos ensinamentos da História. Se V. Exa., em vez de confiar nas
crenças religiosas do Sr. Ministro das Finanças, se desse ao trabalho de ir ler
a intervenção do deputado Victor Hugo, em 10 de Novembro de 1848, veria que, já
nesse tempo remoto, falando de cortes selvagens que se propunham fazer para o
orçamento do ano seguinte, o grande poeta e realista que era
Victor Hugo dizia o seguinte, que traduzo, para benefício de V. Exa.:
“Ninguém mais do que eu, caros senhores, está penetrado da necessidade urgente
de aligeirar o orçamento; simplesmente, na minha opinião, o remédio para o
embaraço das nossas finanças não reside em certas economias mesquinhas e
detestáveis; o remédio estaria, quanto a mim, mais alto e algures; estaria numa
política inteligente e tranquilizadora, que desse confiança à França, que
fizesse renascer a ordem, o trabalho e o crédito, e que permitisse diminuir,
suprimir mesmo as enormes despesas sociais que resultam dos embaraços da
situação.”
Repare, Sr. Primeiro-ministro: o remédio estaria “mais alto e algures”
(para nós, naquilo — Parcerias Público-Privadas, especulações na Bolsa,
transferências para fora e paraísos fiscais, empresas e institutos que alimentam
clientelas, etc. etc. — em que V. Exa. se recusa a mexer, castigando,
de preferência, a classe média, para proteger desavergonhadamente uma falsa
elite de falsos empresários). E repare ainda: “uma política inteligente e
tranquilizadora”. Porque se trata mesmo de tranquilizar um povo levado ao
desespero e à beira dos mais indesejáveis desacatos. As revoluções surgem
nestes momentos e sabe V. Exa. porquê? Leia o nosso Eça, tantas vezes de bom
conselho. Diz ele: “As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as
desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias.” É quando as pessoas já não
toleram a extensão das “dolorosas infâmias” que se não importam de experimentar
o risco das “dolorosas fatalidades das revoluções”. E não se apresse V. Exa. a sugerir
que estou a ameaçá-lo (nem para isso tenho poder e, ainda menos jeito e
desejo): estou só a preveni-lo. Não estique demasiado a corda.
O Sr. Ministro das Finanças, para lhe ser franco, parece-me um ser
astral e completamente alienado das realidades sociais do País. Será um
técnico, embora se me afigure fraco em cálculo e previsão. Mas, a V. Exa., que
não é técnico de coisa nenhuma, cumpre-lhe, ao menos, compensar um pouco, com
alguma sensibilidade política e social (digamos, simplesmente: humana), a total
e inquietante insensibilidade do chanceler das Finanças. Pode ser (quem sabe?)
que ainda vá a tempo."
Com os melhores cumprimentos,
Eugénio Lisboa
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